Pandemia deixa claro que não estamos todos no mesmo barco, diz Iza sobre racismo e desigualdade
Iza já está há mais de dois meses em sua casa no Rio de Janeiro, cumprindo as orientações de autoridades e especialistas durante a pandemia do novo coronavírus. Desde 13 de março, conta a cantora , está isolada com seu marido, o produtor musical Sérgio Santos.
“Agora estou bem melhor. Nas primeiras semanas da quarentena eu estava surtando como todo mundo. Não é um momento fácil, é uma coisa que a gente nunca viveu antes”, diz Iza em entrevista por telefone ao Lineup. “A gente dispensou todo mundo que trabalha aqui para ficarem com as suas famílias.”
Um mês antes, em fevereiro, a artista carioca gravou em São Paulo o clipe da música “Let Me Be the One”, em parceria com o rapper americano Maejor e participação de diversos refugiados. Feito antes da quarentena, o novo trabalho faz parte da campanha “Be the One”, promovida pela fundação Humanity Lab com a ONU (Organização das Nações Unidas).
Segundo os organizadores, o movimento tem como finalidade incentivar pessoas a serem agentes de liderança em suas próprias comunidades, oferecer treinamentos e arrecadar doações para ajudar os mais carentes principalmente durante a crise de Covid-19. Além de dar mais visibilidade a refugiados e à diversidade.
A música já está disponível em plataformas de streaming, mas o vídeo será apresentado nesta quinta (21), às 14h, quando ocorre uma live com representantes das duas instituições e os dois cantores para um debate e pocket-shows. A transmissão será feita no YouTube, Facebook e Twitter da brasileira.
“A gente fala sobre empatia, respeito, abraçar as diferenças, sobre respeitar a individualidade de cada um, entendendo o que somos seres coletivos, a gente fala sobre consumo consciente, sobre o meio ambiente”, enumera Iza.
O lançamento da campanha, previsto inicialmente para 14 de março, ocorre em um momento de grande crise humanitária agravada pelo coronavírus.
“A gente vê muitas pessoas falando que a pandemia uniu todo o mundo. Para mim, a pandemia está deixando muito claro que não estamos todos no mesmo barco”, afirma a Iza. “Lá no início, quando eu comecei a doar cestas básicas, surgiram questões de que, por exemplo, a mãe não tem nem dinheiro para pagar o gás. Então de que vale aquela cesta?”
Para a artista, em momentos como esse, o negro é quem mais fica vulnerável. “Porque é a parte da população que não tem acesso à educação, não tem como se informar, não tem acesso à internet, não tem como saber o que está acontecendo, não tem acesso à saúde pública”, justifica.
Tendo em vista a desigualdade social e o racismo, Iza diz que tem um sonho. “Eu tenho muita vontade de ter uma ONG voltada para a capacitação de negros e inclusão no mercado de trabalho.”
Com a pandemia, shows pelo mundo foram adiados. Após anúncio de medidas restritivas, a cantora teve de adiar quatro apresentações —não são tantas, pois ela já tinha se preparado para tirar um curto período sabático, mais longe dos palcos. O Rock in Rio Lisboa, para o qual ela havia sido escalada em junho deste ano, foi remarcado para 2021.
A pausa na agenda, afirma, tem servido para reavivar hobbies —como desenhar— e amadurecer e criar projetos musicais. “Sempre gostei muito de trabalhos manuais, minha mãe é professora de artes. Desde criança eu faço miniaturas e desenho muito. Mas, desde que comecei a trabalhar com música, eu fui abduzida e nunca mais fiz isso.”
Iza prepara seu segundo álbum da carreira, o sucessor de “Dona de Mim (2018). A previsão inicial de lançamento com a Warner era no segundo mestre de 2020 —porém com a pandemia tudo pode mudar.
Leia entrevista com Iza e ouça a nova música:
Lineup – Como tem sido a quarentena? O que você tem feito que antes não conseguia, o que tem descoberto?
Iza – Agora estou bem melhor. Nas primeiras semanas da quarentena eu estava surtando como todo mundo. Não é um momento fácil, é uma coisa que a gente nunca viveu antes. E a gente está em casa sozinho, lidando com problemas que a gente evitava, vivendo nossa vida na correria. Com certeza é um privilégio, porque isso é uma romantização da quarentena, mas ao mesmo tempo não deixa de ser tenso. No primeiro momento, eu estava muito preocupada com o que a gente estava lidando, ninguém estava entendendo ao certo o que estava acontecendo, como se prevenir eu estava preocupada com os meus, estava triste, comecei a me cobrar por não ter passado mais tempo com a minha família antes. A gente começa a se questionar e a rever muita coisa. Acho que a quarentena tem me mostrado e reforçado para mim o que realmente é essencial e mostrando que a gente tem que ser paciente. Temos que sempre ter paciência com aquilo que a gente sente, a gente tem que respeitar nossas mudanças de humor, a gente tem que entender que não está fácil para ninguém.
Tem conseguido fazer novas músicas?
Então as primeiras semanas eu acho que foi um momento mais de questionamento e agora estou no momento mais produtivo. Eu estou conseguindo voltar a compor, criar coisas novas. Estou me preparando para os mais próximos lançamentos. Eu estou no meio desse lançamento [da música “Let Me Be the One”], que foi uma campanha extensa, que a gente super se dedicou para fazer a divulgação. Estou em contato comigo mais do que nunca em contato com a minha família mas do que nunca, por mais que estejamos todos longe um do outro. Então tem esses momentos de muita descoberta. Isso é um privilégio para muitas pessoas, poder romantizar a quarentena.
Desde quando está em casa?
Eu estou em casa desde o dia 13 de março. A gente dispensou todo mundo que trabalha aqui para ficarem com as suas famílias. Estamos eu e meu marido aqui há mais de dois meses. Estamos vivendo a vida de casal que a gente nunca viveu. A gente já tinha ficado bastante tempo juntos, mas nunca só nós dois dentro da nossa casa. Eu estou cada vez mais apaixonada pelo meu marido e ele por mim, a gente tem vivido momentos muito bons. De certa forma eu me sinto grata por poder conseguir fazer coisas que a gente não tinha feito antes, aproveitar essa intimidade que a gente não tinha desenvolvido antes como casal, que é importante pra todo mundo.
E um dos seus hobbies é desenhar?
Eu sempre gostei muito de trabalhos manuais, minha mãe é professora de artes. Desde criança eu faço miniaturas e desenho muito. Mas, desde que comecei a trabalhar com música, eu fui abduzida e nunca mais fiz isso. Então desde que eu comecei a quarentena tenho feito.
Que tipo de desenhos?
Eu gostava muito de desenhar roupas e objetos, como sapatos, brincos. Antes eu queria fazer desenho industrial para poder desenvolver essas coisas. Depois eu quis fazer arquitetura porque eu sempre gostei de miniatura de casa. Mas graças a Deus eu nunca fiz nada disso, porque eu ia ficar muito puta se eu tivesse me aplicado tanto em cálculo, que é um negócio que eu odeio, para depois virar cantora. Eu acabei fazendo comunicação, consegui usar essa coisa visual, ser diretora de criação antes e comecei a cantar. Eu gosto de miniaturas de casas, de coisinhas… Eu não deveria, mas vou te mostrar, Amon [risos]. É uma coisa que tem me ajudado a me conectar com a Isabela [nome de batismo] de antes. A minha mãe está muito feliz porque ela está vendo a Isabela que ela não vê há muito tempo. É uma coisa que me relaxa e me ajuda a pensar em música, por incrível que pareça. Eu consigo relaxar, me desligar, Começar a pensar em coisas que eu gostaria de fazer musicalmente.
Por falar em relaxar, um período mais difícil, há algumas semanas você fez um post sobre saúde mental e recebeu apoio de muitos fãs, já que muita gente se viu em situação parecida à do seu relato…
Aquela mensagem foi fruto de uma conversa com uma mãe, eu passei o dia inteiro na merda, eu estava muito mal naquele dia. Eu acordei mal e aí para melhorar a gente tenta entender porque está mal. E aí eu não tinha motivo aparente, físico, não tinha acontecido nada específico para me deixar mal. E na verdade a gente está vivendo uma pandemia. Quando a gente viveu isso? Quando a gente achou que viveria? No Brasil a gente tem isso, achamos que nunca nada vai chegar aqui. Sempre [o brasileiro] fica olhando as coisas acontecerem ao redor do mundo. Acha que está morando em um território neutro, em que nada vai acontecer. E chegou aqui. A gente começa a se questionar, começa lidar com emoções das quais a gente estava fugindo. É muito complicado. Você começa o dia bem, vê alguma notícia e fica muito mal, daqui a pouco você ser você se força a ficar bem, e aí alguém te manda uma mensagem você fica com medo e daqui a pouco você fica ansioso. Você vê as pessoas trabalhando, malhando e você se se sente improdutivo. E na verdade a gente tem que passar por isso da forma que a gente puder passar. Precisamos respeitar a nossa individualidade, a gente tem o nosso tem o nosso tempo e não está fácil pra ninguém. Tem gente que disfarça maravilhosamente bem, mas não está fácil para ninguém. Então eu fiquei feliz, porque eu sou uma pessoa muito reservada, você sabe, mas eu fiquei muito feliz de falar sobre aquilo que era algo que realmente estava acontecendo comigo e ver que várias pessoas se viram naquela situação. É uma realidade todo mundo.
A campanha foi planejada antes do período de pandemia, trata de desigualdade, de refugiados, de preconceitos contra minorias. Mas ela acaba sendo lançada em um momento em que se encaixa bem. Qual a mensagem que a música nova tenta passar?
Exatamente isso. A gente gravou em fevereiro, a gente ia lançar dia 20 de março, só que no dia 14 de março parou tudo e a gente não sabia como ia fazer. Como é uma galera envolvida tinha muita burocracia até remarcarem tudo, demorou para entender como ia lançar. A gente fala sobre empatia, respeito, abraçar as diferenças, sobre respeitar a individualidade de cada um, entendendo o que somos seres coletivos, a gente fala sobre consumo consciente, sobre o meio ambiente. E o bizarro como realmente tudo se aplica a este momento. Eu fico feliz de poder levar essa mensagem através da música, que é o que eu mais amo fazer, e essa campanha fala sobre isso. ‘Be the One’ convida e faz com que pessoas entendam que se você quer mudar o mundo, se que você quer proteger a natureza, você precisa olhar para você e entender de que forma você pode se adequar a isso, da melhor forma. O que eu quero dizer é como você pode mudar, como você pode realmente cobrar de uma forma mais justa considerando o que é aquilo que você cobra é aquilo que você vive. A música tem essa mensagem de incitar que as pessoas sejam a diferença, a gente canta aquela canção para que cada pessoa empodere, cante aquilo, que você pode ser aquele que vai levar um sorriso, alguém que vai acolher outra pessoa.
Na gravação vocês contracenaram com alguns refugiados, homossexuais, negros… Teve alguma história que te marcou?
Isso foi muito especial, porque a grande maioria das pessoas que estavam ali no cast eu conheci ali, naquele momento. A gente se conheceu ali, mas eu já sabia das histórias deles porque tinham me passado. A Thereza [Brown, drag queen, performer e beauty stylist que cresceu em Osasco] eu já conhecia havia bastante tempo, ela está sempre comigo. Mas o bonito do clipe foi ver gente da Síria, da República do Congo, da China, da Venezuela, cada um falando um idioma mas todo mundo se entendendo de certa forma. As pessoas preocupadas em interagir, interessadas em saber as histórias um dos outros. Elas estavam se sentindo importante porque sabiam que elas tinham sido escolhidas por aquele motivo. Ver o sonho de cada pessoa é muito importante e essa mensagem que a gente quer passar. Eu sempre falo muito da Thereza, porque é mais do que uma questão social, é pessoal. Eu a conheço, quem me apresentou foi a Glória Groove em uma festa na casa dela, quando a gente podia fazer festa [risos]. Desde então a Thereza está nos bastidores de todos os meus clipe, e poder colocá-la na frente da câmera foi um presente especial para mim.
Nos EUA, o número de negros mortos por causa da Covid-19 é grande e desproporcional. No Brasil, não foge muito disso. Como você avalia a situação, em que as desigualdade ficam mais evidentes?
A gente vê muitas pessoas falando que a pandemia uniu todo o mundo. Para mim, a pandemia está deixando muito claro que não estamos todos no mesmo barco. Lá no início, quando eu comecei a doar cestas básicas, surgiram questões de que, por exemplo, a mãe não tem nem dinheiro para pagar o gás, então de que vale aquela cesta? A gente fala sobre se higienizar e lavar as mãos, mas tem gente no alto do Complexo do Alemão que não tem água na bica. Então cadê a igualdade? E acho que essa pandemia só deixou mais clara a disparidade social. E eu fico muito feliz por estar envolvida nesta campanha porque mais da metade dos refugiados no Brasil são negros também, vivendo em condições de vulnerabilidade. Vai além da questão física, as pessoas moram em lugares onde não é possível fazer o distanciamento social, porque uma casa termina praticamente dentro da outra. Fica claro que em momentos como esse a população negra é a mais vulnerável nesse sentido, porque é a parte da população que não tem acesso à educação, não tem como se informar, não tem acesso à internet, não tem como saber o que está acontecendo, não tem acesso à saúde pública. É importante ressaltar a importância da criação de políticas públicas que incluam essas pessoas.Não só nesses momentos de pandemia.
E você tem vontade de ter uma ONG própria? Como seria esse projeto?
Eu tenho muita vontade de fazer isso. Eu trabalhei com audiovisual, me formei em publicidade na PUC e acho que no total no curso éramos algo como 12 negros . Éramos muito poucos considerando a quantidade total de alunos. Eu sempre tive muita vontade de me ver muito mais nesses lugares. Então eu tenho muita vontade de ter uma ONG voltada para a capacitação de negros e inclusão no mercado de trabalho. Por meio de parceiros, com a minha própria influência no mercado e até pela possibilidade de trazer essas pessoas para trabalharem comigo. É um projeto que eu estou desenhando com muito cuidado, mas que acho que é necessário. Eu fico muito feliz de falar sobre isso, porque talvez tenha gente também que se inspire em ter um projeto parecido em várias áreas. O meu é voltado para artes entretenimento e audiovisual, mas precisamos de projetos como esse em todas as áreas.
Alguma previsão?
Por enquanto não principalmente nesse momento de pandemia.
Antes do Rock in Rio 2019, falamos sobre sua vontade de ter uma carreira internacional. Agora você fez mais uma parceria com um americano em campanha da ONU, está escalada para o Rock in Rio Lisboa, teve música com Ciara, shows nos EUA. Como está este cenário para você?
Eu tenho parcerias no radar, mas eu sempre dou meus passos de uma forma muito cuidadosa. Como a arte envolve exposição, eu sempre tomo muito cuidado com as coisas que eu vou fazer. Neste momento de quarentena eu tenho conseguido tratar projetos, fazer conexões e criações com quem eu sempre quis. Mas eu não sei se isso seria uma carreira internacional. Eu penso na carreira como um todo e se eu tiver oportunidade de colaborar com artistas que não são brasileiros e que eu admiro eu não vou deixar isso passar. Eu vou com certeza querer fazer isso acontecer. Então é provável que isso aconteça, que eu faça parceria com outras pessoas, como Maejor e Ciara. Mas eu não sei se a princípio eu chamaria isso de carreira internacional. Eu chamaria isso de uma pessoa muito feliz com essa possibilidade de que a música tem me proporcionado.
Algum nome de parceria?
Por enquanto não, Amon [risos]